O pai da moda brasileira

Por Laura Valente
Publicação: 01/02/2015 , Caderno Masculino&Feminino, Jornal Estado de Minas.
No centenário de Alceu Penna, resgate de memórias e a criação de coleção inspirada nas Garotas relembram o artista que revolucionou o guarda‐ roupa feminino com uma estética 100% nacional

Já se vão 100 anos e podem passar mais 100 que a influência de Alceu Penna na construção de uma moda autenticamente brasileira jamais será esquecida. Natural de Curvelo, na região Central de Minas Gerais, ele fez história ao se mudar para o Rio de Janeiro, cidade em que desenvolveu uma carreira rica em produções gráficas diversas, especialmente marcada pelo sucesso estrondoso dos desenhos criados para a coluna Garotas do Alceu, Publicada na revista O Cruzeiro semanalmente, de 1938 a 1964,  as páginas recheadas de novidades em moda e comportamento, dicas de penteado e maquiagem e ilustrações para o guarda‐roupa da mulher com modelos de praia, dia a dia, festas formais e temáticas como o carnaval eram esperadas com ansiedade não só pelas cariocas, mas por mocinhas de todo o país.

Para comemorar o centenário de nascimento, parentes do artista têm se empenhado na montagem de uma série de homenagens. No universo da moda, uma coleção‐cápsula criada pelo estilista Victor Dzenk com inspiração na obra de Alceu promete virar hit do próximo verão, temporada 2015/16.  “As Garotas representam um clássico da moda nacional, de uma riqueza incrível, com potencial de influência que permanece até os dias atuais”, afirma Dzenk. A ideia de criar a coleção surgiu de um contato entre o estilista e uma das sobrinhas de Alceu, Laís Penna, filha de um dos irmãos dele, também já falecido, Adalto de Paula Penna. “Convidei o Dzenk para curtir a página comemorativa ao centenário do meu tio no Facebook e dali começamos a trocar figurinhas. Pensei nele porque também é um mineiro com alma carioca, e lida muito bem com estampas. Além de homenagear o Alceu, essa coleção vai resgatar e até mesmo apresentar a história dele para quem não o conhece, já que o Victor é um profissional bastante influente”, cita Laís.

Releitura do mestre

A coleção‐cápsula merecerá destaque especial durante o lançamento de primavera‐verão 2015’16 do estilista, nomeada Jardim Secreto. “A estamparia é o DNA da minha marca, então irei explorar muito as imagens das Garotas e dos croquis, mas não de forma literal e, sim, em grafismos, uma releitura de estampas criadas por ele como borboletas e animal printings. Ele gostava de retratar as Garotas acompanhadas de gatos de estimação, e este também estará presente”, adianta Dzenk.
A modelagem das peças promete passear pelos shapes dos anos 1940 a 1960, e explorar tecidos usados no período, criados a partir de fibras naturais: algodão, gabardine, linho, shantung, tricoline, entre outros.
Haverá, ainda, t‐shirts. “Pretendo abraçar imagens dos croquis na íntegra e em recortes, algumas envelopando a camiseta inteira, em 360 graus, cobrindo toda a superfície”, completa.
Ainda segundo o estilista, é um privilégio discorrer sobre um artista tão completo e importante para a história da moda brasileira. “Na abertura da biografia do Alceu (escrita por Gonçalves Júnior) há uma citação dizendo que ele foi o responsável pela descrição do estilo da carioca antes de Vinícius de Morais e Tom Jobim apresentarem Garota de Ipanema ao mundo, que pode até mesmo ter sido inspirada nas Garotas. Isso é muito forte, representativo. O Alceu ilustrou o estilo da mulher brasileira de forma muito precisa, uma vanguarda para a época com reflexos não só na moda, mas no comportamento, na atitude, no lifestyle mesmo”. É como definiu o texto da revista O Cruzeiro na época do lançamento da coluna: “As Garotas são a expressão da vida moderna. Endiabradas e inquietas, elas serão apresentadas todas as semanas por Alceu Penna”.

Carioca x mineira

Na Belo Horizonte dos anos 1940, a máquina de costura da menina Júnia Melo trabalhava semanalmente para reproduzir os modelos exibidos pelas Garotas do Alceu. “Comecei a costurar para mim com 13 anos e, dali, também para as minhas colegas do Colégio Santa Maria. Comprava a revista O Cruzeiro só para ver as Garotas e tirar os modelos”, lembra ela, que trabalhou a vida inteira com modelagem, leciona e pretende lançar um livro técnico ainda este ano.

“Ele tinha um desenho maravilhoso, e não fazia só a ilustração, mas falava sobre o comportamento também. Havia modelos de festas como carnaval, junina, debutantes, roupas de praia e de toda hora. O Alceu acompanhava o que as mocinhas estavam fazendo, a cor de batom, tipo de maquiagem e penteado, onde estavam indo, e reproduzia tudo com extremo bom gosto.”

Em uma época em que não havia lojas de roupa pronta, era o Alceu quem ditava moda. “Fazia modelos em laise, cambraia de linho, linho, seda, veludo, muitas vezes enfeitados com tira bordada (ou bordado inglês). A diferença é que aqui em Belo Horizonte as mães nos proibiam de sair de vestido de alcinha, ao contrário do que ocorria com minhas primas cariocas, que também copiavam os modelos do Alceu. Aliás, todas as mocinhas jovens e de família do país copiavam os modelos dele.” Junia cita ainda a importância dos desenhos do artista para o surgimento de uma moda com características brasileiras. “Não tínhamos muito figurino nacional, por isso tirávamos modelos de roupas de filmes com figurino francês ou americano. Aqui, ele foi pioneiro em um desenho bom, todo mundo que costurava prestava atenção naquilo que ele propunha de moda, influenciou muito.”

Para a especialista em modelagem, naquela época e mesmo nos dias de hoje Alceu foi mais que um estilista. “Ele foi um prestador de serviço nessa área, e sempre dava algum tipo de orientação.” Entre os modelos inesquecíveis, ela cita um vestido de linho JK, estreado com sucesso na hora dançante do Automóvel Clube. “Era vermelho e tinha a parte de cima toda bordada de pastilha branca, com linha grossa, em forma de bolinhas, lindo, lindo. Até hoje faço esse modelo nas minhas aulas. O Alceu foi minha maior fonte de referência.”

Origens

Laís Penna conta que o tio começou a desenhar ainda criança, muitas vezes nas calçadas da cidade natal, Curvelo, com giz de alfaiate. “Dizem que um casal de pintores ficou impressionado com o talento daquele jovem e começou a ensinar algumas técnicas para ele, além de o incentivá‐lo para que fosse para o Rio de Janeiro, ao contrário do desejo do meu avô, para quem Alceu deveria seguir outra carreira ”. Na Cidade Maravilhosa, o menino chegou a estudar arquitetura, mas após a morte do pai decidiu‐se pela formação na Escola Nacional de Belas‐Artes (ENBA). “Dali, ele começou a batalhar a carreira de cartunista e ilustrador em diversos veículos e na publicidade, inclusive criando tipografias. Foi um dos pioneiros também na produção de quadrinhos (HQs), atuou em artes gráficas de modo geral, mas a fama mesmo veio com ”As Garotas”, descreve a sobrinha.  Para ela, as moças produzidas por Alceu surgiram na mesma época em que as ”pin‐ups” começaram a fazer sucesso no cenário mundial, e representaram uma inovação.

“Ele viajava muito, atuou como correspondente de moda na revista O Cruzeiro, ia para Paris, para os EUA, e adequava os costumes de moda de lá para a realidade brasileira.” Apesar de partir do interior de Minas ainda muito jovem, o artista deixou boas lembranças por lá. “Há muitas histórias das pessoas que viveram na época. Ele visitava a cidade anualmente, fazia desenhos para amigas, para blocos de carnaval, e não cobrava nada. Muitas vezes, mandava para nós malas repletas de desenhos e tecidos para a minha mãe costurar.”
A sobrinha também descreve a personalidade do tio famoso. “Ele era caseiro, e bem alegre em família, tinha uma ironia fina, gostava de contar piada. Quando voltava de viagem, trazia lembranças para todos os sobrinhos.”

Alguns anos após a morte de Alceu, Laís se debruçou no acervo do tio para criar artigos de vestuário e decoração. Atualmente, tem trabalhado com a produção de jogos americanos, calendários e outros produtos em parceria com o irmão, Ivan Penna.

Há um tempo ela, a irmã Mara, a prima Luiza Penna de Andrade e outros membros da família fizeram uma força tarefa para organizar o acervo e homenagens pelo centenário do artista, que tem influenciado gerações desde que lançou seu olhar criativo e sensível para a mulher brasileira. “A obra dele parece não ter fim. É um legado realmente muito rico.”
Legado precioso ‐

Filha de América Penna, a Miloca, dois anos mais velha que Alceu, a arquiteta Luiza Penna de Andrade tem se empenhado na força tarefa criada para organizar o acervo e o legado deixados pelo artista. “Ele desenhava como respirava, mas nunca foi muito organizado. Então, era a tia Thereza, irmã que morou com ele desde mocinha até a morte, quem cuidava de alguma coisa. Ela também morreu, há oito anos, não há mais nenhum dos 11 irmãos vivo.

O que pretendemos é garantir a preservação do que ficou, organizar esse legado e torná‐lo acessível ao público.” Ainda segundo Luiza, vários originais de Alceu ainda inéditos foram doados para o Museu da Moda, em Niterói, RJ.
Luiza, que se casou com um vestido desenhado pelo tio, conta que o legado de Alceu é bastante explorado em trabalhos acadêmicos, livros e biografias, por pessoas de fora e também da família, a exemplo das sobrinhas‐netas do artista Gabriela Penna (autora do livro Vamos, Garotas!) e Rachel Penna (idealizadora do trabalho de graduação e exposição – Alceu Penna ‐ as garotas que tem yumpf, no Museu Inimá de Paula, em 2009).

Ela também cita Maria Cláudia Bonadio, professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), como uma pesquisadora atuante no legado de Alceu. “Ela tem dado uma contribuição muito rica nesse sentido, inclusive orientando trabalhos acadêmicos na temática. No site www.alceupenna.com.br procuramos relacionar tudo o que já foi publicado sobre ele”, informa Luiza.
Além do site, a família também criou uma página no Facebook, Centenário de Alceu Penna, e tem tentado aprovar projetos via Lei de Incentivo para a organização de exposições. “Pleiteamos fazer uma mostra no Centro de Referência da Moda de Belo Horizonte, já nos inscrevemos na seleção, mas ainda não sabemos se será aprovada. Nosso ideal é criar exposições itinerantes, que possam viajar pelo país, já que o tio Alceu era conhecido em todo o Brasil, nas cidades onde circulava a revista O Cruzeiro e os outros trabalhos produzidos por ele”.
Entre as dificuldades da família está a reunião do acervo, já que muitos desenhos e outros documentos espalharam‐se ao longo dos anos, além de patrocínio. “O que temos investido até agora são recursos pessoais, apesar de já ter mandado projetos para vários órgãos e empresas do setor têxtil. Tenho muita vontade de fazer mais por ele, por esse legado. Há vários livros sobre o trabalho do meu tio, mas nenhum de imagens inéditas, por exemplo, catalogadas de acordo com as datas de origem. Um desejo meu é organizar esse material”, planeja Luiza. E derrete‐se em admiração pelo tio famoso. “Ele foi um cara muito na dele, simples e cultíssimo. Um intelectual que falava várias línguas, pessoa muito educada, muito discreto, muito amigo dos irmãos, um exemplo de vida.”

Leia mais: http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/feminino-e-masculino/2015/02/01/interna_femininoemasculino,140481/o-pai-da-moda-brasileira.shtml

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